A disputa entre
ciência e religião pela posse da verdade é antiga. No Ocidente, começou no
século XVI, quando Galileu defendeu a tese de que a Terra não era o centro do
Universo. Essa primeira batalha foi vencida pela Igreja, que obrigou Galileu a
negar suas idéias para não ser queimado vivo. Mas o futuro dessa disputa seria
diferente: pouco a pouco, a religião perdeu a autoridade para explicar o mundo.
Quando, no século XIX, Darwin lançou sua teoria sobre a evolução das espécies,
contra a idéia da criação divina, o fosso entre ciência e religião já era
intransponível. Nas últimas décadas, a Bíblia passou a ser alvo de ciências
como a filologia (o estudo da língua e dos documentos escritos), a arqueologia
e a história. E o que os cientistas estão provando é que o livro mais
importante da história é, em sua maior parte, uma coleção de mitos, lendas e
propaganda religiosa.
Primeiro livro
impresso por Guttemberg, no século XV, e o mais vendido da história, a Bíblia
reúne escritos fundamentais para as três grandes religiões monoteístas – Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo. Na verdade, a Bíblia é uma biblioteca de 73 livros
escritos em momentos históricos diferentes. O Velho Testamento, aceito como
sagrado por judeus, cristãos e muçulmanos, é composto de 46 livros que
pretendem resumir a história do povo hebreu desde o suposto chamamento de
Abraão por Deus, que teria ocorrido por volta de 1850 a.C., até a conquista da
Palestina pelos exércitos de Alexandre Magno e as revoltas do povo judeu contra
o domínio grego, por volta de 300 a.C. Os 27 livros do Novo Testamento abarcam
um período bem menor: cerca de 70 anos que vão do nascimento de Jesus à
destruição de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C.
O coração do Velho
Testamento são os primeiros cinco livros, que compõem a Torá do Judaísmo (a
palavra significa “lei”, em hebraico). Em grego, o conjunto desses livros
recebeu o nome de Pentateuco (“cinco livros”). São considerados os textos
“históricos” da Bíblia, porque pretendem contar o que ocorreu desde o início
dos tempos, inclusive a criação do homem – que, segundo alguns teólogos, teria
ocorrido em 5000 a.C. O Pentateuco inclui o Gênesis (o “livro das origens”, que
narra a criação do mundo e do homem até o dilúvio universal), o Êxodo (que
narra a saída dos judeus do Egito sob a liderança de Moisés) e os Números (que
contam a longa travessia dos judeus pelo deserto até a chegada a Canaã, a terra
prometida).
Das três ciências que
estudam a Bíblia, a arqueologia tem se mostrado a mais promissora. “Ela é a
única que fornece dados novos”, diz o arqueólogo israelense Israel Finkelstein,
diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel Aviv e autor do
livro The Bible Unearthed (A Bíblia desenterrada, inédito no Brasil), publicado
no ano passado. A obra causou um choque em estudiosos de arqueologia bíblica,
porque reduz os relatos do Antigo Testamento a uma coleção de lendas inventadas
a partir do século VII a.C.
O Gênesis, por
exemplo, é visto como uma epopéia literária. O mesmo vale para as conquistas de
David e as descrições do império de Salomão.
A ciência também
analisa os textos do Novo Testamento, embora o campo de batalha aqui esteja
muito mais na filologia. A arqueologia, nesse caso, serve mais para compor um
cenário para os fatos do que para resolver contendas entre as várias teorias. O
núcleo central do Novo Testamento são os quatro evangelhos. A palavra evangelho
significa “boa nova” e a intenção desses textos é clara: propagandear o
Cristianismo. Três deles (Mateus, Marcos e Lucas) são chamados sinóticos, o que
pode ser traduzido como “com o mesmo ponto de vista”. Eles contam a mesma
história, o que seria uma prova de que os fatos realmente aconteceram. Não é
tão simples. O problema central do Novo Testamento é que seus textos não foram
escritos pelos evangelistas em pessoa, como muita gente supõe, mas por seus
seguidores, entre os anos 60 e 70, décadas depois da morte de Jesus, quando as
versões estavam contaminadas pela fé e por disputas religiosas.
Nessa época, os
cristãos estavam sendo perseguidos e mortos pelos romanos, e alguns dos
primeiros apóstolos, depois de se separarem para levar a “boa nova” ao resto do
mundo, estavam velhos e doentes. Havia, portanto, o perigo de que a mensagem
cristã caísse no esquecimento se não fosse colocada no papel. Marcos foi o
primeiro a fazer isso, e seus textos serviram de base para os relatos de Mateus
e Lucas, que aproveitaram para tirar do texto anterior algumas situações que
lhes pareceram heresias. “Em Marcos, Jesus é uma figura estranha que precisa
fazer rituais de magia para conseguir um milagre”, afirma o historiador e
arqueólogo André Chevitarese.
Para tentar enxergar
o personagem histórico de Jesus através das camadas de traduções e das inúmeras
deturpações aplicadas ao Novo Testamento, os pesquisadores voltaram-se para os
textos que a Igreja repudiou nos primeiros séculos do Cristianismo. Ignorados,
alguns desapareceram. Mas os fragmentos que nos chegaram tiveram menos
intervenções da Igreja ao longo desses 2 000 anos. Parte desses evangelhos,
chamados “apócrifos” (não se sabe ao certo quem os escreveu), fazem parte de
uma biblioteca cristã do século IV descoberta em 1945 em cavernas do Egito. Os
evangelhos estavam escritos em língua copta (povo do Egito).
O fato de esses
textos terem sido comprovadamente escritos nos primeiros séculos da era cristã
não quer dizer que eles sejam mais autênticos ou contenham mais verdades que os
relatos que chegaram até nós como oficiais. Pelo contrário, até. Os coptas, que
fundariam a Igreja cristã etíope, foram considerados hereges, porque não
aceitavam a dupla natureza de Jesus (humana e divina). Para eles, Jesus era
apenas divino e os textos apócrifos coptas defendem essa versão. Mesmo assim,
eles trazem pistas para elucidar os fatos históricos.
A tentativa de
entender o Jesus histórico buscando relacioná-lo a uma ou outra corrente
religiosa judaica também foi infrutífera, como ficou demonstrado no final da
tradução dos pergaminhos do Mar Morto, anunciada recentemente. Esses papéis,
achados por acaso em cavernas próximas do Mar Morto, em 1947, criaram a expectativa
de que pudesse haver uma ligação entre Jesus e os essênios, uma corrente
religiosa asceta, cujos adeptos viviam isolados em comunidades purificando-se à
espera do messias. O fim das traduções indica que não há qualquer ligação
direta entre Jesus e os essênios, a não ser a revolta comum contra a dominação
romana.
O resultado é que,
depois de dois milênios, parece impossível separar o verdadeiro do falso no
Novo Testamento. O pesquisador Paul Johnson, autor de A História do
Cristianismo, afirma que, se extrairmos, de tudo o que já se escreveu sobre
Jesus, só o que tem coerência histórica e é consenso, restará um acontecimento
quase desprovido de significado. “Esse ‘Jesus residual’ contava histórias,
emitiu uma série de ditos sábios, foi executado em circunstâncias pouco claras
e passou a ser, depois, celebrado em cerimônia por seus seguidores.”
O que sabemos com
certeza é que Jesus foi um judeu sectário, um agitador político que ameaçava
levantar os dois milhões de judeus da Palestina contra o exército de ocupação
romano. Tudo o mais que se diz dele precisa da fé para ser tomado como verdade.
Assim como aconteceu com Moisés, David e Salomão do Velho Testamento, a figura
de Jesus sumiu na névoa religiosa.
O Dilúvio
No Gênesis, a
história do dilúvio é uma das poucas que ainda alimenta o interesse dos
cientistas, depois que os físicos substituíram a criação do mundo pelo Big Bang
e Darwin substituiu Adão pelos macacos. O que intrigou os pesquisadores foi o
fato de uma história parecida existir no texto épico babilônico de Gilgamesh –
o que sugere que uma enchente de enormes proporções poderia ter acontecido no
Oriente Médio e na Ásia Menor. Parte do mistério foi solucionado quando os
filólogos conseguiram demonstrar que a narrativa do Gênesis é uma apropriação
do mito mesopotâmico. “Não há dúvida de que os hebreus se inspiraram no mito de
Gilgamesh para contar a história do dilúvio”, afirma Rafael Rodrigues da Silva,
professor do Departamento de Teologia da PUC de São Paulo, especialista na
exegese do Antigo Testamento.
O povo hebreu entrou
em contato com o mito de Gilgamesh no século VI a.C. Em 598 a.C., o rei
babilônico Nabucodonosor, depois de conquistar a Assíria, invadiu e destruiu
Jerusalém e seu templo sagrado. No ano seguinte, os judeus foram deportados
para a Babilônia como escravos. O chamado exílio babilônico durou 40 anos. Em
538 a.C., Ciro, o fundador do Império Persa, depois de submeter a Babilônia
permitiu o retorno dos judeus à Palestina. Os rabinos ou “escribas” começaram a
reconstruir o Templo e a reescrever o Gênesis para, de alguma forma, dar um
sentido teológico à terrível experiência do exílio. Assim, a ameaça do dilúvio
seria uma referência à planície inundável entre os rios Tigre e Eufrates, região
natal de Nabucodonosor; os 40 dias de chuva seriam os 40 anos do exílio; e a
aliança final de Deus com Noé, marcada pelo arco-íris, uma promessa divina de
que os judeus jamais seriam exilados.
Solucionado o
mistério do dilúvio na Bíblia, continua o da sua origem no texto de Gilgamesh.
No final da década de 90, dois geólogos americanos da Universidade Columbia,
Walter Pittman e Willian Ryan, criaram uma hipótese: por volta do ano 5600
a.C., ao final da última era glacial, o Mar Mediterrâneo havia atingido seu
nível mais alto e ameaçava invadir o interior da Ásia na região hoje ocupada
pela Turquia, mais precisamente a Anatólia. Num evento catastrófico, o
Mediterrâneo irrompeu através do Estreito de Bósforo (ver infográfico na página
44), dando origem ao Mar Negro como o conhecemos hoje. Um imenso vale de terras
férteis e ocupado por um lago foi inundado em dois ou três dias.
Os povos que ocupavam
os vales inundados tiveram que fugir às pressas e o mais provável é que a
maioria tenha morrido. Os sobreviventes, porém, tinham uma história
inesquecível, que ecoaria por milênios. Alguns deles, chamados ubaids,
atravessaram as montanhas da Turquia e chegaram à Mesopotâmia, tornando-se os
mais antigos ancestrais de sumérios, assírios e babilônios. Estaria aí a origem
da narrativa de Gilgamesh. Essa teoria foi recebida por arqueólogos e
antropólogos como fantástica demais para ser verdadeira.
No entanto, no verão
de 2000, o caçador de tesouros submersos Robert Ballard, o mesmo que encontrou
os restos do Titanic, levou suas poderosas sondas para analisar o fundo do Mar
Negro nas proximidades do que deveriam ser vales de rios antes do cataclisma
aquático. Ballard encontrou restos de construções primitivas e a análise da
lama colhida em camadas profundas do oceano provaram que, há 7 600 anos, ali
existia um lago de água doce. A hipótese do grande dilúvio do Mar Negro estava
provada.
O Êxodo
Não há registro
arqueológico ou histórico da existência de Moisés ou dos fatos descritos no
Êxodo. A libertação dos hebreus, escravizados por um faraó egípcio, foi
incluída na Torá provavelmente no século VII a.C., por obra dos escribas do
Templo de Jerusalém, em uma reforma social e religiosa. Para combater o
politeísmo e o culto de imagens, que cresciam entre os judeus, os rabinos inventaram
um novo código de leis e histórias de patriarcas heróicos que recebiam
ensinamentos diretamente de Jeová. Tais intenções acabaram batizadas de
“ideologia deuteronômica”, porque estão mais evidentes no livro Deuteronômio. A
prova de que esses textos são lendas estaria nas inúmeras incongruências
culturais e geográficas entre o texto e a realidade. Muitos reinos e locais
citados na jornada de Moisés pelo deserto não existiam no século XIII a.C.,
quando o Êxodo teria ocorrido. Esses locais só viriam a existir 500 anos
depois, justamente no período dos escribas deuteronômicos.
Também não havia um
local chamado Monte Sinai, onde Moisés teria recebido os Dez Mandamentos. Sua
localização atual, no Egito, foi escolhida entre os séculos IV e VI d.C., por monges
cristãos bizantinos, porque ele oferecia uma bela vista. Já as Dez Pragas
seriam o eco de um desastre ecológico ocorrido no Vale do Nilo quando tribos
nômades de semitas estiveram por lá (veja infográfico na página 45).
Vejamos agora o caso
de Abraão, o patriarca dos judeus. Segundo a Bíblia, ele era um comerciante
nômade que, por volta de 1850 a.C., emigrou de Ur, na Mesopotâmia, para Canaã
(na Palestina). Na viagem, ele e seus filhos comerciavam em caravanas de
camelos. Mas não há registros de migrações de Ur em direção a Canaã que
justifiquem o relato bíblico e, naquela época, os camelos ainda não haviam sido
domesticados. Aqui também há erros geográficos: lugares citados na viagem de
Abraão, como Hebron e Bersheba, nem existiam então. Hoje, a análise filológica
dos textos indica que Abraão foi introduzido na Torá entre os séculos VIII e
VII a.C. (mais de 1 000 anos após a suposta viagem).
Então, como surgiu o
povo hebreu? Na verdade, hebreus e canaanitas são o mesmo povo. Por volta de
2000 a.C., os canaanitas viviam em povoados nas terras férteis dos vales,
enquanto os hebreus eram nômades das montanhas. Foi o declínio das cidades
canaanitas, acossadas por invasores no final da Idade do Bronze (300 a.C. a
1000 a.C.), que permitiu aos hebreus ocupar os vales. Segundo a Bíblia, os
hebreus conquistaram Canaã com a ajuda dos céus: na entrada de Jericó, o
exército hebreu toca suas trombetas e as muralhas da cidade desabam, por
milagre. Mas a ciência diz que Jericó nem tinha muralhas nessa época. A chegada
dos hebreus teria sido um longo e pacífico processo de infiltração.
David e Salomão
Há pouca dúvida de
que David e Salomão existiram. Mas há muita controvérsia sobre seu verdadeiro
papel na história do povo hebreu. A Bíblia diz que a primeira unificação das
tribos hebraicas aconteceu no reinado de Saul. Seu sucessor, David, organizou o
Estado hebraico, eliminando adversários e preparando o terreno para que seu
filho, Salomão, pudesse reinar sobre um vasto império. O período salomônico
(970 a.C. a 930 a.C.) teria sido marcado pela construção do Templo de Jerusalém
e a entronização da Arca da Aliança em seu altar.
Não há registros
históricos ou arqueológicos da existência de Saul, mas a arqueologia mostra que
boa parte dos hebreus ainda vivia em aldeias nas montanhas no período em que
ele teria vivido (por volta de 1000 a.C.) – assim, Saul seria apenas um entre
os muitos líderes tribais hebreus. Quanto a David, há pelos menos um achado
arqueológico importante: em 1993 foi encontrada uma pedra de basalto datada do
século IX a.C. com escritos que mencionam um rei David.
Por outro lado, não
há qualquer evidência das conquistas de David narradas na Bíblia, como sua
vitória sobre o gigante Golias. Ao contrário, as cidades canaanitas mencionadas
como destruídas por seus exércitos teriam continuado sua vida normalmente. Na verdade,
David não teria sido o grande líder que a Bíblia afirma. Seu papel teria sido
muito menor. Ele pode ter sido o líder de um grupo de rebeldes que vivia nas
montanhas, chamados apiru (palavra de onde deriva a palavra hebreu) – uma
espécie de guerrilheiro que ameaçava as cidades do sul da Palestina. Quanto ao
império salomônico cantado em verso e prosa na Torá hebraica, a verdade é que
não foram achadas ruínas de arquitetura monumental em Jerusalém ou qualquer das
outras cidades citadas na Bíblia.
O principal indício
de que as conquistas de David e o império de Salomão são, em sua maior parte,
invenções é que, no período em que teriam vivido, a arqueologia prova que a
cultura canaanita (que, segundo a Bíblia, teria sido destruída) continuava
viva. A conclusão é que David e Salomão teriam sido apenas pequenos líderes
tribais de Judá, um Estado pobre e politicamente inexpressivo localizado no sul
da Palestina.
Na verdade, o grande
momento da história hebraica teria acontecido não no período salomônico, mas
cerca de um século mais tarde. Entre 884 e 873 a.C., foi fundada Samária, a
capital do reino de Israel, no norte da Palestina, sob a liderança do rei
israelita Omri. Enquanto Judá permanecia pobre e esquecida no sul, os
israelitas do norte faziam alianças com os assírios e viviam um período de
grande desenvolvimento econômico. A arqueologia demonstrou que os monumentos
normalmente atribuídos a Salomão foram, na verdade, erguidos pelos omridas. Ou
seja: o primeiro grande Estado judaico não teve a liderança de Salomão, e sim
dos reis da dinastia omrida.
Enriquecido pelos
acordos comerciais com Assíria e Egito, o rei Ahab, filho de Omri, ordena a
construção dos palácios de Megiddo e as muralhas de Hazor, entre outras obras.
Hoje, os restos arqueológicos desses palácios e muralhas são o principal ponto
de discórdia entre os arqueólogos que estudam a Torá. Muitos ainda os atribuem
a Salomão, numa atitude muito mais de fé do que de rigor científico, já que as
datações mais recentes indicam que Salomão nunca ergueu palácios.
Judá
Entender a história
de Judá é fundamental para entender todo o Velho Testamento. Até o século VIII
a.C., Judá era apenas uma reunião de tribos vivendo numa região desértica do
sul da Palestina. Em 722 a.C., porém, os assírios resolvem conquistar as ricas
planícies e cidades de Israel – o reino do norte, mais desenvolvido
economicamente e mais culto. Judá, no sul, que não pareceu interessar aos
assírios, pôde continuar independente, desde que pagasse tributos ao império
assírio.
Assim, enquanto no
norte acontece uma desintegração dos hebreus, levados para a Assíria como
escravos, no sul eles continuam unidos em torno do Templo de Jerusalém. Judá
beneficiou-se enormemente da destruição do reino do norte. Jerusalém cresceu
rapidamente e cidades como Lachish, que servia de passagem antes de chegar a
Jerusalém, foram fortificadas. Era o momento de Judá tomar a frente dos
hebreus. Para isso, precisaria de duas coisas: um rei forte e um arsenal
ideológico capaz de convencer as tribos do norte de que Judá fora escolhida por
Deus para unir os hebreus. Além disso, era preciso combater o politeísmo que
voltava a crescer no norte.
Josias foi o
candidato a assumir a posição de rei unificador. Durante uma reforma no Templo
de Jerusalém, em seu governo, foi “encontrado” (na verdade, não há dúvidas de
que o livro foi colocado ali de propósito) o livro Deuteronômio, com todos os
ingredientes para um ampla reforma social e religiosa. O livro possui até
profecias que afirmam, por exemplo, que um rei chamado Josias, da casa de
David, seria escolhido por Deus para salvar os hebreus. Ungido pelo relato do
livro, o ardiloso Josias consegue seu objetivo de centralizar o poder, mas
acaba morto em batalha. Judá revolta-se contra os assírios e o rei da Assíria,
Senaqueribe, invade a região, destruindo Lachish e submetendo Jerusalém. A
destruição de Lachish, narrada com riqueza de detalhes na Bíblia, também
aparece num relevo encontrado em Nínive, a antiga capital assíria. E as
escavações comprovaram que a Bíblia e o relevo são fiéis ao acontecido. Ou
seja: nesse caso, a arqueologia provou que a Torá foi fiel aos fatos.
Jesus
Segundo o Novo
Testamento, Jesus nasceu em Belém, uma cidadezinha localizada oito quilômetros
ao sul de Jerusalém, filho do carpinteiro José e de uma jovem chamada Maria,
que o concebeu sem macular sua virgindade. Os evangelhos de Lucas e Mateus
afirmam que Jesus nasceu “perto do fim do reino de Herodes”. O texto de Lucas
afirma que a anunciação aconteceu em Nazaré, onde José e Maria viviam, mas eles
foram obrigados a viajar até Belém pelo censo “ordenado quando Quirino era
governador da Síria”.
Hoje, o que se sabe
de concreto sobre Jesus é que ele nasceu na Palestina, provavelmente no ano 6
a.C., ao final do reinado de Herodes Antibas (que acabou em 4 a.C.). A
diferença entre o nascimento real de Jesus e o ano zero do calendário cristão
se deve a um erro de cálculo. No século VI, quando a Igreja resolveu reformular
o calendário, o monge incumbido de fazer os cálculos cometeu um erro. Além disso,
é praticamente certo que Jesus nasceu em Nazaré e não em Belém. A explicação
que o texto de Lucas dá para a viagem de Jesus até Belém seria falsa. Os
registros romanos mostram que Quirino (aquele que teria feito o censo que
obrigou a viagem a Belém) só assumiu no ano 6 d.C. – 12 anos depois do ano de
nascimento de Jesus. A história da viagem a Belém foi criada porque a tradição
judaica considerava essa cidade o berço do rei David – e o messias deveria ser
da linhagem do primeiro rei dos judeus.
A concepção imaculada
de Maria é um dos dogmas mais rígidos da Igreja, mas nem sempre foi um consenso
entre os cristãos. Alguns textos apócrifos dos séculos II e III sugerem que
Jesus é fruto de uma relação de Maria com um soldado romano. A menina Maria
teria 12 anos quando concebeu Jesus. Na rígida tradição judaica, uma mulher que
engravidasse assim poderia ser condenada à morte por apedrejamento. O velho
carpinteiro José, provavelmente querendo poupar a menina, casou-se com ela e
escondeu sua gravidez até o nascimento do bebê. A data de 25 de dezembro não
está na Bíblia. É uma criação também do século VI, quando o calendário foi
alterado.
A Bíblia afirma que
Jesus teve duas irmãs e quatro irmãos: Tiago, Judas, José e Simão. Mas não se
sabe se esses eram filhos de Maria ou de um primeiro casamento de José. Muitos
teólogos afirmam que eles eram, na verdade, primos de Jesus – em aramaico,
irmão e primo são a mesma palavra. A Bíblia não fala quase nada sobre a
infância e a adolescência de Jesus, com exceção de uma passagem em que, aos 12
anos, numa visita ao Templo de Jerusalém durante a Páscoa, seus pais o
encontram discutindo teologia com os sábios nas escadarias do templo do monte.
É quase certo, porém, que ele cresceu em Nazaré.
Jesus falava
certamente o aramaico, a língua corrente da Palestina e, provavelmente,
entendia o hebreu por ter tomado lições na sinagoga e por ler a Torá. Os
evangelhos apócrifos o pintam como um menino Jesus travesso, capaz de dar vida
a figuras de barro para impressionar os colegas e até mesmo a fulminar um
menino que esbarrou em seu ombro, para ressuscitá-lo logo em seguida, depois de
tomar uma bronca do pai.
Certamente José
procurou iniciá-lo na arte da carpintaria e é provável que Jesus tenha
trabalhado como carpinteiro durante um bom tempo. Oportunidade não lhe faltou.
Escavações recentes revelaram que ao mesmo tempo em que Jesus crescia em
Nazaré, bem próximo era construída a monumental cidade de Séfores, idealizada
por Herodes Antibas para ser a capital da Galiléia. Séfores estava a uma hora a
pé de Nazaré e é muito provável que José e Jesus tenham trabalhado ali. Em
Séfores Jesus teria visto a passagem da família real de Herodes Antibas e a
opulência das famílias de sacerdotes do Templo de Jerusalém. O fato de Jesus
ter passado boa parte da sua vida ao lado de Séfores indicaria que ele não era
um camponês rústico como já se pensou, mas tinha contato com a cultura do mundo
helênico.
Aos 30 anos, Jesus se
fez batizar por João Batista nas margens do rio Jordão. Segundo a Bíblia,
durante o batismo João reconhece Jesus como o messias. Há registros históricos
da existência de João Batista e, recentemente, arqueólogos encontraram entre o
monte Nebo e Jericó, nas margens do rio Jordão, ruínas de um antigo local de
peregrinação por volta do século III d.C.
Decidido a cumprir
sua missão na terra, Jesus dirigiu-se então para a Galiléia, onde recrutou seus
primeiros discípulos entre os pescadores do lago Tiberíades. Passou a viver com
seus primeiros seguidores em Cafarnaum, cidade de pescadores próxima do lago de
Tiberíades. Por dois anos Jesus pregou pela Galiléia, Judéia e em Jerusalém,
proferindo sermões e contando parábolas. Segundo a Bíblia, realizou 31
milagres, incluindo 17 curas e seis exorcismos. Alguns dos mais famosos são a
ressurreição de Lázaro, a transformação de água em vinho e a multiplicação dos
peixes.
Cafarnaum, onde Jesus
teria vivido com seus discípulos, era um povoado de cerca de 1 500 moradores
naquela época. Escavações encontraram os restos da casa de um dos discípulos,
provavelmente de Simão Pedro (hoje conhecido como São Pedro), além de um barco
datado da mesma época da passagem de Cristo pelo lugar. Não há, porém, certeza
quanto ao número de discípulos que viviam próximos de Jesus. Nos evangelhos,
apenas os oito primeiros conferem – os quatro últimos têm muitas variações. A
hipótese mais provável é que o número “redondo” de 12 discípulos foi uma
invenção posterior para espelhar, no Novo Testamento, as 12 tribos dos hebreus
descritas no Velho Testamento.
Depois de viajar por
quase toda a Palestina, Jesus parte para cumprir seu destino – ou, segundo
alguns especialistas, seu plano. Durante a semana da Páscoa, o principal evento
religioso do calendário judeu, Jesus entra em Jerusalém montado num burro e
atravessando a Porta Maravilhosa. Esse foi, certamente, um ato deliberado de
provocação aos sacerdotes do Templo e à elite judaica. Jesus faz exatamente o
que o profeta Zacarias afirmava na Torá que o messias faria ao chegar. Jesus
estava mandando uma mensagem de provocação aos sacerdotes do Templo. No segundo
dia da Páscoa, Jesus vai ao Templo e ataca os mercadores e cambistas
raivosamente.
Na quinta-feira,
percebendo que o cerco apertava, os apóstolos celebram com Jesus a última ceia.
A imagem que ficou dessa cena, gravada por Da Vinci e outros pintores, nada tem
de verdadeiro. Os judeus comiam deitados de flanco, como os romanos, e as mesas
eram ordenadas em formato de U e não dispostas numa linha reta. Durante a ceia,
Judas levanta-se para trair seu mestre – ou, como alguns sugerem, para cumprir
uma ordem dada pelo próprio Jesus. A captura acontece no Jardim do Getsêmani,
onde Jesus e seus discípulos descansavam no caminho para Betânia, onde ficariam
hospedados.
Levado para o
Sinédrio, o Conselho dos Sacerdotes do Templo, Jesus reafirma sua missão divina
e é condenado. Existem provas da denúncia de Caifás a Pilatos. Estudiosos
judeus afirmam, porém, que o julgamento perante o Sinédrio jamais ocorreu
porque o Sinédrio não se reunia durante a Páscoa. Essa versão teria sido
incluída tardiamente na Bíblia após a ruptura definitiva entre cristãos e
judeus. Jesus foi morto pelos romanos porque era considerado um agitador
político.
Na manhã de
sexta-feira, na residência do prefeito Pôncio Pilatos, Jesus é condenado à
morte. Ele atravessa as ruas de Jerusalém carregando sua própria cruz e é
crucificado entre dois ladrões. O caminho que Jesus percorreu nada tem a ver
com a Via Crúcis visitada pelos turistas hoje. Ela é uma criação do século XIV,
quando a cidade esteve nas mãos dos cavaleiros cruzados. A maioria dos
historiadores e arqueólogos concorda, porém, que o morro do Calvário (Gólgota),
localizado ao lado de uma pedreira, foi realmente o lugar da crucificação.
Concordam também que seu corpo tenha sido colocado numa das grutas próximas. O
que aconteceu então depende da fé de cada um. Há varias versões: que Jesus
teria sobrevivido ao martírio, que outra pessoa teria morrido em seu lugar, que
seu corpo teria sido roubado ou, claro, que ele teria ressuscitado.
Jerusalém
Quando Jesus
atravessou a Porta Maravilhosa em seu burrico, Jerusalém era a maior cidade do
Império Romano entre Damasco (atual capital da Síria) e Alexandria (no Egito),
com uma população estimada em torno de 80 000 moradores. Durante a semana da
Páscoa, porém, o número de peregrinos na cidade ultrapassava 100 000, o que dá
uma idéia do clima de agitação vivido na cidade: carros de boi dividiam as ruas
estreitas com os pedestres e havia um grande vaivém de animais sendo trazidos
para o sacrifício durante as festividades.
Conquistada pelos
romanos em 63 a.C., Jerusalém estava no auge do seu esplendor arquitetônico.
Onde quer que chegasse seu império, os romanos faziam questão de introduzir seu
estilo arquitetônico em obras como estradas, palácios, anfiteatros e
hipódromos. Em 31 a.C., os romanos haviam colocado o judeu Herodes Antibas como
governador da Palestina. Sua principal obra foi a construção do Templo de
Jerusalém, cujo tamanho e riqueza foram pensados para rivalizar com o templo
salomônico descrito na Torá. As obras haviam terminado no ano 10 a.C. – quatro
anos antes do nascimento de Jesus.
A cidade era dividida
entre as partes alta e baixa. Na alta, escavações recentes mostraram que a
elite da cidade tinha uma vida requintada. As casas tinham normalmente dois
andares, e eram construídas ao redor de um pátio pavimentado de pedra. Havia
piscinas privadas para os rituais de purificação. Os pisos eram cobertos por
mosaicos e as paredes, por afrescos com cenas campestres. Também foram
encontrados copos de vidro finamente trabalhados e frascos de perfume.
A riqueza da elite
judaica era alimentada pela cobrança de taxas dos peregrinos. Para as
convicções rígidas de Jesus sobre riqueza e ostentação, era inadmissível o
estilo de vida dos sacerdotes e do rei judeu Herodes, que aceitavam e se
beneficiavam com a dominação dos pagãos romanos. Não é possível afirmar que
Jesus estava decidido a morrer crucificado naquela semana de Páscoa, mas há
elementos para admitir que ele havia decidido ir até as últimas conseqüências
para denunciar a situação. O resultado todos nós sabemos.
Paulo
No ano 36 d.C., vivia
na Antióquia (Turquia) um judeu helenizado chamado Paulo de Tarso. Além de
cidadão romano, era também um soldado do imperador, cuja função era perseguir
cristãos. Mas, em 36 d.C., Paulo converteu-se à fé cristã, segundo ele depois que
Jesus lhe apareceu milagrosamente. A partir de então, Paulo se transformaria no
mais decidido e incansável apóstolo do Cristianismo.
A principal
preocupação de Paulo era converter os gentios (os não-judeus) espalhados pelo
império. Em 16 anos, fez quatro grandes viagens por Grécia, Ásia, Síria e Roma.
Foi o primeiro a escrever sobre o Cristianismo nas 14 cartas que enviou às
comunidades cristãs que havia fundado. Paulo achava que a mensagem de Cristo
não podia ficar confinada na Palestina.
Em Jerusalém, porém,
os judeus cristãos, liderados pelo irmão de Jesus, Tiago, estavam voltando às
origens judaicas. Se não fosse por Paulo, é bem provável que o Cristianismo
acabasse por ser reassimilado pelo Judaísmo, extinguindo-se. Para resolver suas
divergências, provavelmente em 49 d.C., houve o primeiro concílio da igreja
cristã em Jerusalém. Pela primeira vez enfrentaram-se Paulo e os seguidores
sobreviventes de Jesus.
Ali começou a ser
edificado o Cristianismo atual. Paulo lutou contra a circuncisão obrigatória
para os convertidos – algo que certamente afastaria muitos homens gentios. E
defendeu a revogação das leis e prescrições judaicas em favor dos preceitos
simples de Cristo. Sua opinião prevaleceu principalmente porque o apóstolo
Pedro convenceu-se de que ele estava certo.
Em 59 d.C., Paulo foi
novamente convocado a se explicar e, no debate que se seguiu, obrigado, pela
ala judaica, a adorar o Templo de Jerusalém como demonstração de fé. Durante a
visita, foi identificado e preso e, em 60 d.C., deportado para Roma – onde
ficou em prisão domiciliar. Em 64 d.C., quando Nero mandou perseguir os
cristãos, Pedro e Paulo acabaram presos e condenados à morte. Pedro foi
crucificado e Paulo, por ser cidadão romano, teve o privilégio de ser
decapitado.
Em 70 d.C., durante
uma revolta dos judeus contra a dominação romana, Tito destruiu Jerusalém e seu
templo, obrigando os judeus a fugir da Palestina. O desaparecimento dos que se
opunham à visão universalizante que Paulo tinha do Cristianismo abriu caminho
para sua visão da fé. O centro de gravidade do Cristianismo deslocou-se para
Roma, que, em poucos séculos, passaria a ser o centro da cristandade.
Uma bela história.
Seja a da versão bíblica oficial, a apócrifa ou a que a ciência hoje propõe
como a que tem mais chances de ser verdadeira.
Esse texto foi ótimo.
ResponderExcluirEstou "salvando" os últimos meses de 2.012,e vejo agora que estive ausente do site por uma fase.
Eu estava me ocupando bastante com orações.(e também havia cismado que eu não era de "ajuda" aqui)
Por isso,minha participação acabou minguada.
Ainda bem que deu tempo agora para dizer que esse foi um ótimo artigo.
(eu o li na época,só não comentei)