Maconha faz mal sim
Adriana Dias Lopes
Rev Veja 2293, nº44
O atual liberalismo
em torno do consumo da droga está em descompasso com as pesquisas médicas mais
recentes. As sequelas cerebrais são duradouras, sobretudo quando o uso se dá na
adolescência.
"Hoje ainda, até
o fim do dia, 1 milhão de brasileiros terão fumado maconha. A maioria dessas
pessoas está plenamente convencida de a droga não faz mal. Elas conseguem
trabalhar, estudar, namorar, dirigir, ler um livro, cuidar dos filhos... A
folha seca e as flores de Cannabis são consumidas agora com uma naturalidade
tal que nem parece ser um comportamento definido como crime pela lei penal
brasileira. O aroma penetrante inconfundível permeia o ar nas baladas, nas
áreas de lazer dos condomínios fechados, nos carros, nas imediações das
escolas. A maconha que em outros tempos já foi chamada de "erva
maldita", agora ganhou uma aura inocente de produto orgânico e muitos de
seus usuários acendem os "baseados" como se isso fosse parte de um
ritual de comunhão com a natureza, uma militância-. espiritual de sintonia com
o cosmo. Ha uma gigantesca onda de tolerância com esse vício. Nos Estados Unidos,
dezessete estados já regulamentaram seu uso medicinal. Em novembro, os estados
de Washington E Colorado farão um plebiscito sobre a legalização. No Uruguai, o
presidente José Mujica pretende estatizar a produção e a distribuirão da droga.
Em maio deste ano, no Brasil, sob o argumento do direito à liberdade de
expressão, o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a marcha da maconha -
desde, é caro que ela não fosse consumida pelos manifestantes, em um de seus
shows, em janeiro, Rita Lee causou tumulto ao interromper a apresentação em
Sergipe para interpelar os policiais que tentavam reprimir o fumacê na platéia:
""Este show é meu. Não é de vocês. Por que isso? Não pode ser por
causa de um baseadinho. Cadê um baseadinho pra eu fumar aqui?"".
Na contramão da liberalidade oficial, legal e até social com
o uso da maconha, a ciência médica vem produzindo provas cada dia mais
eloquentes de que a fumaça da maconha faz muito mal para a saúde do usuário
crônico - quem fuma no mínimo um cigarro por semana durante um ano. Fumar na
adolescência, então, é um hábito que pode ter consequências funestas para o
resto da vida da pessoa. Aqueles cartazes das marchas que afirmam que
"maconha faz menos mal do que álcool e cigarro" são fruto de
percepções disseminadas por usuários, e não o resultado de pesquisas
científicas incontrastáveis. Maconha não faz menos mal do que álcool ou
cigarro. Cada um desses vícios agride o organismo a sua maneira, mas, ao
contrário do que ocorre com a maconha, ninguém sai em passeata defendendo o
alcoolismo ou o tabagismo. Diz um dos mais respeitados estudiosos do assunto, o
psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo:
"Encarar o uso da maconha com leniência é uma tese equivocada, arcaica e
perigosa".
Alguns dos argumentos para a legalização da maconha têm uma
lógica perfeita apenas na aparência. Os defensores da legalização alegam que.
vendida legalmente, a maconha também seria cultivada dentro da lei e
industrializada. A oferta aumentaria e os preços cairiam. Isso tornaria inúteis
os traficantes. Eles sumiriam do mapa, levando consigo todo o imenso colar de
roubos, assassinatos e corrupção policial que a repressão à maconha provoca. O
argumento não resiste ao mais simples teste de realidade embutido na pergunta: "Quem
disse que traficante vende só maconha?". Se a maconha fosse liberada, o
tráfico de cocaína, heroína e crack continuaria e todos os problemas sociais
decorrentes do poder desse submundo ficariam intactos. Acrescente-se à equação
o fato de que a maconha efetivamente faz mal à saúde, e a lógica dos defensores
de sua legalização evapora-se no ar ainda mais rapidamente.
Um dos estudos mais
impactantes e recentes sobre os males da maconha foi conduzido por treze
reputadas instituições de pesquisa, entre elas as universidade Duke, nos
Estados Unidos, e de Otago, na Nova Zelândia. Os pesquisadores acompanharam
1000 voluntários durante 25 anos. Eles começaram a ser estudados aos 13 anos de
idade. Um grupo era composto de fumantes regulares de maconha. Os integrantes
do outro grupo não fumavam. Quando os grupos foram comparados, ficou evidente o
dano à saúde dos adolescentes usuários de maconha que mantiveram o hábito até a
idade adulta. Os fumantes tiveram uma queda significativa no desempenho
intelectual. Na média, os consumidores crônicos de maconha ficavam 8 pontos
abaixo dos não fumantes nos testes de Q.I. Os usuários de maconha saíram-se mal
também nos testes de memória, concentração e raciocínio rápido. Os resultados
mostram que é falaciosa a tese de que fumar maconha com frequência não
compromete a cognição. Diz o psiquiatra Laranjeira: "Se o usuário crônico
acha que está bem, a ciência mostra que ele poderia estar muito melhor sem a
droga. A maconha priva a pessoa de atingir todo o potencial de sua
capacidade"."
O cineasta paulistano
Álvaro Zunckeller, de 32 anos, fumou maconha durante duas décadas, desde a
adolescência, com os amigos, na roda do bar e na saída da escola. No início,
era um cigarro a cada duas semanas. Chegou a três por dia. "Era um
viciado, mas para a maioria das pessoas eu era um sujeito sossegado, apenas um
pouco desatento", conta ele. Zunckeller é um caso típico da brasa dormida
dos danos da maconha ao cérebro confundidos com um comportamento ameno e um
estilo de vida mais contemplativo. Apenas 10% dos pacientes internados em
clínicas de recuperação de dependentes foram parar ali para tentar se livrar do
vício da maconha. Ainda assim, muitos dos usuários da droga nessas clínicas
foram diagnosticados com esquizofrenia, bipolaridade, depressão aguda ou
ansiedade — sendo o vício de maconha apenas um componente do quadro psicótico e
não seu determinante.
Até pouco tempo atrás
vigorou a tese de que a maconha só deflagra transtornos mentais em pessoas com
histórico familiar dessas doenças. Essa noção benigna da maconha foi sepultada,
entre outros trabalhos, por uma pesquisa feita pelo Instituto de Saúde Pública
da Suécia. Um grupo de 50000 voluntários foi avaliado durante 35 anos. Eles
consumiram maconha na adolescência. Os suecos demonstraram que o risco de
usuário de maconha sem antecedentes genéticos vir a desenvolver esquizofrenia
ou depressão é muito mais alto do que o da população em geral. Entre os
usuários de maconha pesquisados, surgiram 3,5 mais casos de esquizofrenia do
que na média da população. No que se refere à depressão, o número de casos
clínicos foi o dobro. Os sinais de perigo da fumaça estão surgindo em toda
parte. "O bombardeio repetido da maconha sobre o cérebro cria uma marca
neuronal indelével", diz Ana Cristina Fraia, psicóloga da Clínica Maia
Prime, em São Paulo, especializada no tratamento de dependência química.
A razão básica pela
qual a maconha agride com agudeza o cérebro tem raízes na evolução da espécie
humana. Nem ó álcool, nem a nicotina do tabaco; nem a cocaína, a heroína ou o
crack; nenhuma outra droga encontra tantos receptores prontos para interagir
com ela no cérebro como a cannabis. Ela imita a ação de compostos naturalmente
fabricados pelo organismo, os endocanabinoides. Essas substâncias são
imprescindíveis na comunicação entre os neurônios, as sinapses. A maconha
interfere caoticamente nas sinapses, levando ao comprometimento das funções
cerebrais. O mais assustador, dada a fama de inofensiva da maconha, é o fato de
que, interrompido seu uso, o dano às sinapses permanece muito mais tempo — em
muitos casos para sempre, sobretudo quando o consumo crônico começa na adolescência.
Em contraste, os efeitos diretos do álcool e da cocaína sobre o cérebro se
dissipam poucos dias depois de interrompido o consumo.
Com 224 milhões de
usuários em todo o mundo, a maconha é a droga ilícita universalmente mais
popular. E seu uso vem crescendo — em 2007, a turma do cigarro de seda tinha
metade desse tamanho. Cerca de 60% são adolescentes. Quanto mais precoce for o
consumo, maior é o risco de comprometimento cerebral. Dos 12 aos 23 anos, o
cérebro está em pleno desenvolvimento. Em um processo conhecido como poda
neural, o organismo faz uma triagem das conexões que devem ser eliminadas e das
que devem ser mantidas para o resto da vida. A ação da maconha nessa fase de
reformulação cerebral é caótica. Sinapses que deveriam se fortalecer tornando-se
débeis. As que deveriam desaparecer, ganham força.
Os efeitos
psicoativos da maconha são conhecidos desde o ano 2000 antes de Cristo. Seu
princípio psicoativo mais atuante é o tetraidrocanabinol (THC). Um outro
componente da droga, o canabidiol, é o principal responsável pelos seus efeitos
potencialmente terapêuticos. No campus de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo, o psiquiatra José Alexandre Crippa estuda o efeito do canabidiol no
tratamento da fobia social. Trinta e seis voluntários, metade deles composta de
fóbicos, ingeriram cápsulas da substância e, em seguida, tiveram de falar em
público. Os níveis de ansiedade apresentados pelos portadores do transtorno
equivaleram aos registrados pelos participantes sem a fobia. Todos os estudos
sérios sobre os potenciais usos médicos da maconha mediram os efeitos de uma
única substância, selecionada e isolada em laboratório — e não da inalação da
fumaça de um cigarro. Diz Crippa: "Os defensores do uso medicinal do
cigarro da maconha querem mesmo é obter a liberação da droga". Nos Estados
Unidos floresce uma indústria de falsificação de receitas depois da legalização
da erva para o tratamento do glaucoma e no controle da náusea de pacientes
submetidos a quimioterapia. Para a alegria dos viciados, médicos inescrupulosos
prescrevem a droga por preços que variam de 100 a 500 dólares.
Em nenhum país a
maconha é completamente liberada. Um dos mais notoriamente tolerantes é a
Holanda, que permite o consumo da erva nos coffee shops, mas, ainda assim, os
proprietários só estão autorizados a vender 5 gramas, o equivalente a um
cigarro, para cada cliente. Recentemente, o governo holandês proibiu a venda da
droga para estrangeiros. Nem sempre foi assim. Na década de 70, quando a
Holanda descriminalizou a maconha e se tornou uma espécie de Disney libertária,
fumava-se em praça pública. A festa acabou cedo. Desde então, o tráfico só
aumentou. A experiência holandesa — e o recuo das autoridades — derruba um dos
mais rígidos pilares da defesa pela liberação: o de que a venda autorizada
poria fim ao tráfico. Não pôs.
No Brasil, desde
2006, com a lei antidrogas sancionada pelo então presidente Lula, foi
estabelecida uma distinção na punição de traficantes e usuários. Os bandidos
estão sujeitos a até quinze anos de prisão. O consumidor não vai para a cadeia.
Nesse caso, o juiz decide por uma advertência verbal, pela prestação de
serviços comunitários ou recomenda um tratamento médico. A lei brasileira não
contempla o volume máximo da droga a ser classificado como uso pessoal. Luana
Piovani e Isabel Filardis são algumas das celebridades que defendem a tese de
que a maioria dos presos com maconha "nunca cometeu outros delitos, não
tem relação com o crime organizado e portava pequenas quantidades da droga no
ato da detenção". Do ponto de vista social, elas estão corretíssimas. Do
ponto de vista da saúde e da aplicação das leis, nem tanto. O advogado
criminalista Pedro Lazarini faz restrições: "Um bandido pode se valer
desses limites para nunca ser condenado". O ideal seria que as evidências
científicas incontestáveis sobre os ruinosos efeitos da maconha para a saúde
sejam levadas em conta. Todos ganham com isso.
"Atualmente,
"pega mal" ser contra a liberação da maconha"
Aos 66 anos, o
paulistano Valentim Gentil Filho é um dos mais renomados psiquiatras do país.
Com doutorado em psicofarmacologia clínica pela Universidade de Londres, ocupou
o cargo de presidente do conselho diretor do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas durante doze anos — sem nunca ter abandonado a prática
clínica. Tamanha experiência o levou a defender a condenação da maconha.
"Trata-se da única droga a interferir nas funções cerebrais de forma a
causar psicoses irreversíveis", disse a VEJA. "Se fosse para escolher
uma única droga a ser banida, seria a maconha."
Nos últimos dois
anos, a ideia da descriminalização para o usuário da maconha ganhou força no
país. Recentemente, um grupo de juristas apresentou a proposta no Senado com o
objetivo de a medida ser adotada na reforma do Código Penal. O que o senhor
acha disso?
O tráfico deve adorar
isso. Em hipótese alguma dá para liberar geral. Estamos fadando de substâncias
altamente tóxicas. Um dos argumentos pró-maconha é que a legalização reduziria
o consumo da droga. As pesquisas mostram, no entanto, que, quando o consumo é
referendado e a droga é considerada segura, o adolescente experimenta mais. A
história de que os jovens se sentem estimulados a usar drogas por serem
proibidas se aplica apenas a uma minoria,
Há muitos médicos,
inclusive da sua especialidade, que não pensam como o senhor.
Não é simpático
expressar uma opinião contrária à cultura da "anticaretice" que
impera no país em relação à maconha. Atualmente, "pega mal" ser
contra a liberação da maconha. Até mesmo entre oi médicos. O fato de a maconha
não ser tão agressiva como primeiras vezes contribui para isso. Mas ou esses
médicos estão muito desinformados ou eles têm acesso a fontes científicas bem
diferentes das minhas. Se fosse obrigado a escolher uma única droga a ser banida,
seria a maconha, sem sombra de dúvida.
De que forma a
maconha seria mais prejudicial do que as outras drogas?
Drogas como heroína,
cocaína e crack são devastadoras porque podem matar a curto ou curtíssimo
prazo. Além disso, é difícil se livrar dessas substâncias pelo alto grau de
dependência que apresentam. Os danos que elas causam ao cérebro, porém, cessam
quando deixam de ser usadas. Ou seja, passado o período de abstinência, as
funções do organismo se restabelecem. Com a maconha a história é outra. É a
única droga a interferir nas funções cerebrais de forma a causar psicoses
definitivas, mesmo quando seu uso é interrompido.
Qualquer usuário está
suscetível a tais danos?
Sim, mas em graus
diferentes, a depender da frequência de consumo e da tolerância do organismo do
usuário. É uma roleta-russa. O consumidor esporádico, aquele que fuma às vezes,
está sujeito a sofrer estados psicóticos transitórios, como alucinação e
paranoia, ataques de pânico e ansiedade. O efeito permanente nas conexões
nervosas se dá no uso crônico. Aí, sim, absolutamente todos sofrem algum
prejuízo.
O astrônomo americano
Carl Sagan (1934-1996) foi usuário da maconha e um defensor ferrenho da droga.
Ainda assim, deixou o legado de uma carreira brilhante. Ele teria sido uma
exceção?
Sagan foi um gênio, e
sou fã dele. Mas penso que, se não tivesse usado tanta maconha, ele teria sido
um profissional ainda mais brilhante e mais responsável. Sagan tinha algumas
idéias estapafúrdias para um astrônomo. Por exemplo: ele se tomou um dos
líderes do Seti (Search for Extra-Terrestrial Intelligence — Busca por
Inteligência Extraterrestre), que investiu centenas de milhões de dólares na
busca de sinais alienígenas ou provas de alguma civilização extraterreste.
Repito aqui: Não há exceções para os danos causados pela maconha.
É possível
identificar os adolescentes mais propensos a usar a droga?
Há entre eles um
traço de personalidade conhecido como "busca de novidade" (novelty
seeking) ou "busca de sensações" (sensation seeking). Pessoas com
esse perfil se expõem mais a riscos, têm menor controle sobre suas emoções, são
mais impulsivas e têm maior probabilidade de se tomarem dependentes da maconha.
No extremo oposto, alguns jovens introvertidos e ansiosos também ficam
vulneráveis, dependendo do ambiente. Famílias estruturadas ajudam, e a presença
dos pais monitorando o comportamento é uma proteção importante, mas não é
garantia contra o uso.
Qual é a sua opinião
sobre o uso medicinal da maconha?
Acredito em
benefícios de determinadas substâncias extraídas da planta que dá origem à
maconha, a Cannabis. Isso é diferente de preconizar o uso terapêutico da
maconha fumada, que tem muitos compostos nocivos ao organismo, além da fumaça
quente retida no pulmão, com potencial cancerígeno. Não acredito nem mesmo nas
versões "purificadas" da planta, vendidas em alguns estados
americanos e em coffee shops europeus. Não há tecnologia capaz de certificar
que um baseado tenha apenas substâncias não tóxicas da planta. Aliás, a venda
nesses lugares é uma bagunça. O filho de um amigo conseguiu comprar maconha
medicinal na Califórnia porque no mesmo lugar onde comprou a droga comprou
também a receita médica. Uma coisa tem de ficar clara: a agência de saúde
oficial americana (FDA) não valida o consumo da maconha ou de outros preparados
da Cannabis para fins medicinais. Alguns estados liberam por meio de seus
governos.
SA
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